O presidente Lula e a morte de Zapata | Raul Jungmann

O presidente Lula e a morte de Zapata

Morreu, nos porões da ditadura cubana, um pedreiro, negro, pobre, ativista dos direitos humanos, Orlando Zapata Tamoyo, 44 anos, preso desde 2003 nos cárceres de Cuba. Esse fato precisa ser lamentado duplamente porque, praticamente no instante em que morria nos porões de Cuba esse militante dos direitos humanos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciava missão oficial àquele país.

Dias antes, ficamos sabendo, pela imprensa, que o presidente recebera uma carta que lhe pedia que intercedesse em favor dos presos políticos. Refletindo hoje o que é consenso – qual seja a posição internacional desfrutada pelo presidente do Brasil e as suas relações históricas e de amizade com os líderes e com o regime cubano -, pediu-se que ele intercedesse em prol dos direitos humanos, em favor da melhoria das condições carcerárias, em favor dos direitos e da justiça dos prisioneiros de consciência, como bem diz a ONU, que hoje se encontram nos cárceres cubanos.

O presidente teve duas reações: disse que desconhecia essa carta e invocou uma vez mais, como o nosso Itamaraty, a não intervenção para não se imiscuir nas questões internas referentes ao regime cubano.

Isso já forma uma série histórica. É a mesma resposta padrão que o Brasil vem dando para o que ocorreu no Sri Lanka, quando os Tigres Tamis foram literalmente dizimados – eles próprios também agressores dos direitos humanos. E o Brasil? Em lugar de aprovar resolução proposta no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, preferiu evitar a condenação tanto de um lado quanto do outro, o que foi pública e internacionalmente denunciado pelas entidades e associações de direitos humanos.

A mesma postura vem tendo o Brasil com relação ao genocídio e ao massacre de Darfur, promovido pelo governo do Sudão, em que milhares de pessoas vivem o drama de serem arrancadas de suas casas, mortas, dizimadas, literalmente incapacitadas de exercer uma vida digna e humana. A mesma situação vivemos agora, para nosso vexame, no que diz respeito ao Irã, fato recente e da maior gravidade.

O que estará por trás dessas atitudes, que se confrontam com a tradição do Brasil de defesa dos direitos humanos? Essa tradição não é de hoje. Afinal, na nossa Carta Constitucional, no artigo 4º, encontra-se a defesa dos direitos humanos como valor fundamental, como cláusula pétrea.

Nós, que somos signatários de todos os tratados internacionais que visam proteger os direitos humanos, por que adotamos essa posição? Cabe aqui especular. Em primeiro lugar, estamos diante de um projeto que aponta para trás, para um conceito de Brasil potência, que tem muitas similaridades com o que representou, no regime militar, o governo Geisel. Em segundo lugar, estamos numa busca desenfreada e a qualquer preço por um assento no Conselho de Segurança da ONU.

Será que vale a pena abrir mão dos nossos princípios e valores? Será que vale a pena flexibilizar a nossa política externa? Será que vale a pena esquecer que ainda próximos estamos de um regime ditatorial? Será que vale a pena ignorar que brasileiros foram mortos, torturados, sequestrados e exilados? Será que vale a pena ignorar toda a luta, toda a conquista para superar esta situação que vivemos? Será que vale a pena, em nome da projeção de um Brasil potência? Vale a pena ocupar um assento manchado de sangue das vítimas dos sequestros, das torturas, dos desaparecimentos? Vale a pena assentar no Conselho da ONU, abrindo mão de valores históricos, de valores inegociáveis, associados a tiranias? Não faz nenhum sentido.

Hoje o que o mundo está efetivamente a requerer, além de um urgente redesenho da institucionalidade de governança, é a transnacionalização de determinados temas que deveriam ficar acima das nações e das preocupações particularistas, a exemplo de democracia, meio ambiente e direitos humanos.

É triste ver uma democracia arduamente conquistada associada a tiranias, a torturas e a sequestros, associada a desumanos não direitos, porque é disso que se trata. Não quero, não desejo, não merecemos, nem nós nem o povo brasileiro, uma cadeira no conselho de segurança associada a tiranos, tiranias e manchada de sangue. Isso representaria a falência deste País enquanto conjunto de valores e princípios.