MST, 25 anos | Raul Jungmann

MST, 25 anos

O MST teve o mérito de colocar a reforma agrária na ordem do dia no governo Fernando Henrique e o demérito de retirá-la no governo Lula.

FHC prometeu assentar 280 mil famílias em quatro anos. Cumpriu. Em oito, foram mais de 600 mil famílias e 22 milhões de hectares de terra distribuídos. Para se ter um parâmetro, Cuba tem 11 e o estado de São Paulo, 24 milhões de hectares. Fez mais.

Criou o ministério do Desenvolvimento Agrário, o Banco da Terra e o PRONAF, maior programa de alívio da pobreza rural existente. Realizou a mais extensa mudança legislativa na área fundiária desde o Estatuto da Terra de 64. Instituiu o rito sumário nas desapropriações, reformou o ITR e editou uma Lei de Terras, ferindo de morte o latifúndio.

Cassou o registro administrativo de todos os grande latifúndios do país, algo em torno de 3 mil propriedades, totalizando 93 milhões de hectares. Em seguida, ingressou na justiça e retomou mais de 60 milhões, destinando, destes, mais de 25 milhões de hectares para unidades de conservação na Amazônia, na maior transferência de terras para preservação da nossa história – e a custo zero para o meio ambiente. Jóia da coroa desse processo, o parque nacional de Tumucumaque, no Amapá, é a maior unidade de conservação de floresta tropical do mundo.

Ao final dos meus seis anos à frente do MDA, nenhum superintendente do INCRA nos estados era nomeado por indicação política, apenas por mérito. E todos, no ministério e no Instituto, abriam mão dos respectivos sigilos fiscal e bancário ao assumirem cargos de chefia. De quebra, extinguiram-se as nomeações de parentes, antecipando em alguns anos o fim do nepotismo. O mesmo se dando com o início de uma política de gênero e raça no âmbito do MDA e dos assentamentos.

Em seis anos, nenhum massacre de sem terra tornou a acontecer, após Eldorado dos Carajás, de tristíssima memória. Nenhum escândalo de desapropriação fraudulenta de terras ou corrupção pipocara. As invasões de propriedades foram caindo até alcançarem o seu mais baixo nível em décadas, idem os conflitos e assassinatos. Em parte, a redução dos conflitos deveu-se à MP conhecida como das invasões de terra, a qual determinava a retirada do programa de reforma agrária, por dois anos, de qualquer área que fosse invadida.

E o governo Lula, o que fez e faz?

Comecemos por antes do PT chegar ao poder. Lembro-me precisamente o dia e a hora em que li uma entrevista de Lula de página inteira na Folha, a dizer que, eleito, “faria a reforma agrária de uma canetada só”. Sorri e tive raiva, ao mesmo tempo, da evidente demagogia.

Bom, até agora, a reforma agrária do sr. Lula tem seguido, em linhas gerais, a do governo FHC – embora menor, menos criativa e republicana.

Em primeiro lugar, não se mudou uma vírgula na legislação agrária herdada, acidamente criticada durante anos a fio. Nem tão pouco na estrutura executiva e operacional – o MDA e o INCRA. E, aonde mudou, foi para pior. Não se falou mais em combater o nepotismo e todos os cargos comissionados do MDA e do INCRA, sem exceção, voltaram a ser preenchidos por indicação política dos movimentos sociais ou partidos da base do governo e ninguém precisa abrir mão de sigilo algum.

Os números de assentamentos e hectares de terra distribuídos são claramente inferiores, ainda que o volume permaneça razoável. Já os conflitos e assassinatos por terra explodiram no início do atual governo, fruto da expectativa, frustrada, da reforma de uma canetada só. Para, em seguida, se estabilizarem em patamares mais baixos, sem chegar ao nível dos anos finais do governo  FHC.

O Banco da Terra, que motivara uma campanha de desqualificação em nível mundial por parte do MST, foi rebatizado de “crédito fundiário” e prossegue ativo, embora dele não se fale ou faça propaganda.

No nordeste, berço das ligas camponesas e da CONTAG, o grande programa de assentamentos, resultante da transposição do São Francisco, não será implantado – ao menos no atual governo.

A MP das invasões teve um fim bem ao feitio da atual administração: não foi revogada, mas também não é cumprida.

Sempre haverá algum governista a bradar que os recursos destinados à reforma agrária são maiores no governo Lula que no anterior. Sem dúvida, e por um bom motivo. O país cresceu, idem a arrecadação de impostos e o orçamento global.

Por fim, a questão da produtividade da terra. O governo Lula assumiu compromisso solene com o MST que reveria os índices que medem a produtividade agrária, de modo a ampliar o estoque de áreas improdutivas. Quando me contaram isso, tive um acesso de riso e disse ser mais fácil um raio em céu azul. Sabíamos, por experiência própria, que o empresariado rural vai à guerra antes de admitir tal mudança, a qual incendiaria, de verdade, o país. Resultado: perdi a conta das vezes que foi anunciada a mudança nos índices e nada, absolutamente nada, aconteceu.

E o MST diante desse quadro?

Perdeu o rumo, o prumo e a razão de ser: derrotar e, se possível, derrubar o governo Fernando Henrique. O que é cristalino quando se comparam os dois governos e a atuação do Movimento. Fosse razão de ser real do MST a reforma agrária, o desempenho do governo Lula deveria motivar agressividade e pressão maiores que as exercitadas contra FHC. Isso não ocorre, antes pelo contrário. E por três motivos.

Primeiro motivo, este governo é do MST, que o ajudou a “chegar lá”. E o MST é parte do governo, como se verá adiante. Ainda que verbalize, aqui e acolá, contrariedade e críticas periódicas ao programa de reforma agrária, tudo é muito “bem comportado” e dentro de limites traçados no Planalto pelo Ministro Dulci. Pois sabem os sem terra que a alternativa real a Lula é o PSDB. Ou seja, não possuem alternativa política ao que “aí está”, gostem ou não. E o governo, claro, sabe e joga com isso.

Em segundo lugar, o governo fez o MST “governo” através de uma ampla cooptação, via aparelhamento do INCRA e suas superintendências e do Ministério do Desenvolvimento Agrário. De quebra, abriu como nunca as burras do tesouro para o Movimento, através de praticamente todos os seus ministérios, autarquias e estatais. Resultado, grande parte das lideranças intermediárias e superiores do MST foi cooptada, tem cargo comissionado e, anátema, virou chapa branca, aburguesou-se…

Por fim, os programas sociais de transferência de renda, tipo Bolsa Família, criados no governo anterior e ampliados no atual, possuem o condão de secar as fontes de recrutamento do MST.

Moral da história e ironia do destino, o presidente que ia fazer a reforma agrária de uma canetada só, não o fez. Mas tem tudo para passar à história como o verdugo, ainda que não intencional, do Movimento dos Sem Terra…

Já o João Pedro Stédile, quem diria, de incendiário e revolucionário no governo FHC, virou barnabé no governo camarada do camarada Lula.