DIÁRIO DE VIAGEM V – Cobras e Lagartos, 1ª parte | Raul Jungmann

DIÁRIO DE VIAGEM V – Cobras e Lagartos, 1ª parte

Da agenda de encontros da nossa missão, constavam visitas aos presidentes do Congresso e da Corte Suprema de Justiça do Paraguai.

O encontro com o presidente do Senado e do Congresso paraguaio ocorreu às sete da noite da quinta feira, 04 de dezembro e o com o presidente da CSJ no dia seguinte, por volta das 10 hs. Mas entendo que eles merecem ser relatados junto. Afinal, trata-se de dois chefes de poder da república paraguaia. E que não economizaram críticas ao chefe do terceiro poder, o Presidente Fernando Lugo.

Enrique González Quintana, presidente do Senado, é alto, cabelos claros, voz grave, fala por longos períodos, fez-se por seus próprios esforços e trabalho, segundo nos contou, e usava botas de cano alto quando nos recebeu em seu gabinete, num prédio modernoso, com ampla fachada toda de vidro, doação do governo de Taiwan. Pertencente a UNACE – União Nacional de Cidadãos Éticos, partido liderado pelo general Lino Oviedo, 3º colocado nas recentes eleições presidenciais. González iniciou sua fala agradecendo a ajuda que o Brasil deu ao general, quando do seu exílio em nosso país.

Perguntado sobre o seu partido, a UNACE, esclareceu ser uma dissidência do partido Colorado, que durante 60 anos governou o Paraguai. E destacou que, somados, Blanca Ovellar, (31%), colorada e Lino Oviedo (22%) totalizariam, juntos, 53% dos votos, portanto bem mais que o presidente Lugo (41%) na disputa presidencial travada em abril do ano passado.

Chamou atenção, ainda, para o fato que, unidos, Colorado e UNACE possuem maioria tanto na Câmara como no Senado. E que o PLRA – Partido Liberal Radical Autêntico, de onde saíra o vice da chapa de Lugo, não garantiria apoio confiável – exceto parlamentares deste último, ligados aos ministros de estado e que estariam dispostos a cooperar com o chefe do executivo.

Depois dessa “abertura”, o presidente do Senado fez um breve relato dos primeiros meses do governo Lugo, de quem disse ser amigo pessoal há mais de trinta anos. Foi duramente crítico, em especial quanto a dois pontos: acusou o presidente de tentar “enlamear” o legislativo, e assim, promover a adoção de uma vaga “democracia participativa”. Este seria um dos motivos pelos quais o Partido Colorado, a UNACE e setores  do PLRA estariam fortalecendo a oposição.

Provavelmente ele se referia à queda de braço entre o Presidente Lugo, de um lado e o partido Colorado, a UNACE e o Partido Radical, de outro, pela nomeação do ex-presidente Nicanor Duarte no cargo de senador titular, e não vitalício, como manda a Constituição paraguaia. O episódio terminara numa crise precoce, com Lugo acusando González, Oviedo e Nicanor Duarte de estarem articulando um golpe para destituí-lo.

O ponto seguinte, reforma agrária, fez o presidente do Senado subir o tom das críticas. González Quintana acusou o Presidente de incoerência e um “duplo discurso”, defendendo a propriedade privada num momento e no momento seguinte incentivando as invasões de terra.

Atacou duramente a CEPRA – Coordenadoria Executiva para a Reforma Agrária, recém criada, por não contar com a participação dos “setores produtivos” (sic) e reprovou a atitude do Governo sobre Itaipu. Embora defenda que a revisão proposta é uma “exigência nacional”, entende que ela deveria ser alcançada pela via diplomática e não por “chantagens e ameaças”.

Quase na hora de subirmos ao restaurante da Casa para um jantar de confraternização com os parlamentares presentes, indaguei ao senador González se conhecia a presidência de João Goulart em nosso país.

Naqueles idos, o impasse entre um presidente reformista e um Parlamento de maioria conservadora levou o país a uma profunda crise institucional e por fim ao golpe de 64. Em resposta, González deu de ombros e concordou. Com o que, não sei. Mas, se vale o retrospecto acima, acho que sei, sim!

A seguir: DIÁRIO DE VIAGEM V – Cobras e Lagartos, 2ª parte