DIARIO DE VIAGEM IV – Itaipu: muita água ainda vai rolar | Raul Jungmann

DIARIO DE VIAGEM IV – Itaipu: muita água ainda vai rolar

Verdade que nossos diplomatas não demonstraram simpatia pela idéia de uma reunião sobre Itaipu com o lado paraguaio Para eles, nós somos assim como estudantes travessos e curiosos, capazes de pôr a pique meses de pacientes negociações, tecidas com a habilidade de ourives. Já nossos anfitriões exultaram discretamente. Uma janela para falar ao Congresso brasileiro, via nossa missão, era sem dúvida uma boa oportunidade.

Quinta feira, 05 de dezembro, meio da tarde, estávamos de volta ao Ministério das Relações Exteriores. Eles escalaram para falar conosco o seu negociador chefe, Ricardo Canese e mais um técnico. E, da nossa parte, esclarecido que não tínhamos mandato para negociar nada, só ouvir e tirar dúvidas, deu-se início à exposição, sob o olhar atento do vice-chanceler Jorge Lara Castro (o titular estava em missão no exterior).

Em síntese, a agenda paraguaia consta de seis pontos, já de conhecimento público: 

1.     livre disponibilidade da energia gerada

2.     preço justo

3.     revisão do passivo (dívida)

4.     co-gestão plena por ambas as partes

5.     transparência/auditoria conjunta

6.     conclusão das obras faltantes

O primeiro ponto, a livre disponibilidade de energia, significa que o Paraguai poderia vender diretamente ao mercado brasileiro, argentino ou chileno os 50% da energia gerada por Itaipu e que lhe pertencem, ao arrepio do que diz o acordo de constituição da binacional – no entendimento brasileiro. Para eles, o Brasil não teria um direito de “aquisição”, mas um direito de “preferência” da energia não consumida pelo Paraguai. E isto estaria no preâmbulo do tratado de Foz do Iguaçu, na ata mais precisamente.

Já o terceiro item da agenda, a dívida histórica do Paraguai, e decorrente do financiamento, pelo Brasil, da construção da usina, calculada em US$ 19 bi, se refere a um questionamento de sua legitimidade. No dia anterior, em palestra para o próprio governo, Canese dissera que a dívida efetiva era “nula ou quase nula”. Isto porque, durante o período de 1986 a 1996, o tratado foi desrespeitado, mediante a fixação de tarifas abaixo do custo para os dois países, o que teria ficado consignado em documento oficial do Conselho de Administração da empresa. Ou seja, durante dez anos as empresas brasileiras distribuidoras de energia (Furnas, etc) teriam pago a menor a energia de Itaipu. E esse passivo das nossas distribuidoras teria sido incorporado ao principal da dívida da binacional. Já no caso da distribuidora Paraguaia, a ANDE, foram concedidos créditos para posterior ressarcimento. E que foram ou estão sendo efetivamente pagos.

Donde, concluem, o preço justo a ser pago pela energia deles que nos é revendida, o segundo ponto da pauta, deveria ser o “de mercado”. E não como atualmente, com o Paraguai recebendo apenas US$ 2.81 por megawatt-hora e os restantes US$ 42.50 indo para o abatimento de uma dívida que eles consideram ilegítima ou quase inexistente.

Aliás, eles defendem que a questão da dívida que embute o preço justo poderia ser substituída pelo tópico anterior, a livre disponibilidade, já que, sempre segundo Canese, dos 7.000 MW paraguaios disponíveis, a demanda conjunta de Argentina, Uruguai e Chile não ultrapassaria 2.000 MW. Se o Paraguai pudesse atendê-los a preços de mercado com sua energia excedente, o problema estaria zerado ou quase.

No tocante à co-gestão, as críticas são poucas e passíveis de superação. Quanto à transparência e auditoria, penúltimo item – convenhamos – nossos vizinhos tem razão. E nós também!

Escudados no fato que Itaipu é uma binacional, a empresa vem, ao longo de décadas, eximindo-se de realizar qualquer auditoria por órgãos de controle dos dois governos – TCU, no nosso caso e a Controladoria, no deles. Apenas admitem a auditagem feita por empresas privadas e selecionadas pela direção. Ou seja, construída e constituída 100% com recursos públicos dos dois países, Itaipu é uma caixa preta para os dois parlamentos e respectivos órgãos públicos de fiscalização!

Ao término da reunião, abordou-se o tema das obras que ainda não foram realizadas. A principal delas, prevista no tratado, é a construção da estação da margem direita, que daria aos paraguaios o controle físico e técnico sobre os 50% da energia gerada em Itaipu, de “propriedade” deles, e até hoje operada por nós. Construída esta estação, claro, e a exemplo dos bolivianos com o gás, teria o Paraguai a chave, e o poder decorrente, de nos repassar ou não metade da energia gerada em Itaipu…

Finalizada a reunião, longa, por sinal, saímos da Chancelaria e encontramos uma tarde se esvaindo e disputando com o anoitecer as ruas e praças de Assunção. Entreolhamo-nos, e o Marcondes Gadelha resumiu tudo ao dizer que “isso aí ainda tem muita água pela frente. E vai dar muito, muito trabalho”. Concordei, ressaltando que eles tinham alguns pontos de vista sólidos, desde que confirmados. E que tínhamos que ir a Foz conversar com a direção de Itaipu, sem demora.

A seguir: DIÁRIO DE VIAGEM V – Cobras e lagartos