DIÁRIO DE VIAGEM III – “Nós estamos estudando isso, não?” | Raul Jungmann

DIÁRIO DE VIAGEM III – “Nós estamos estudando isso, não?”

Fernando Armindo Lugo Méndez, ex-bispo da diocese de San Pedro, a pobre e humilde província onde nasceu em 31 de maio de 1951, conhece bem o tema “brasiguaios”.

As centenas de milhares de brasileiros, que vivem da terra e plantam soja, estão dispersos em sua província de origem, além do Alto Paraná, Concepción e Canindeyú. Para o presidente Lugo, eles, os brasiguaios, vivem três situações. A primeira, dos que já são paraguaios e não querem mais viver no Brasil, “a maioria”. Outra, dos que estão em situação irregular por arrendamento de terras e muitas vezes pela compra ilegal de “derecheras” (direitos de posse de terras destinadas à reforma agrária), para os quais o governo tem intenção de buscar solução jurídica, ainda que inexistam estatísticas. E, por fim, a dos ligados às multinacionais e que, em vários casos, não moram no país.

Conhecedor da aguda pressão e conflitos que um movimento sem terra pode gerar, perguntei-lhe se pretendia reformular a legislação fundiária que herdara. Em resposta, me disse que a Constituição paraguaia de 1992, fruto de uma conjuntura muito particular, dificilmente poderia ser considerada boa para a reforma agrária que planeja implementar no país.

Tradução, minha, e que será confirmada na entrevista mantida adiante com o presidente do INCRA lá deles, o INDERT: vai, sim, ter que modificá-la. E vai ter que fazer muito mais, se quiser tirar a reforma agrária do papel. Ainda mais que, um pouco antes, se mostrara bastante preocupado com a administração da justiça, a qual não seria nem livre, nem soberana e muito menos objetiva. Donde um dos pilares da sua campanha à presidência ter sido a reforma da justiça, juntamente com a recuperação da soberania energética e cultural, a reforma agrária e a reconstrução da dignidade do país (fim da corrupção e da pirataria).

Nosso encontro fluía tranqüilo, com o presidente Lugo respondendo de modo pausado às nossas questões. Olhei o relógio e me dei conta que mais de uma hora se tinha passado e pressenti que o tempo se esgotava. Fiz-lhe então as duas perguntas finais e, para mim, fundamentais.

Iria o Paraguai pelo caminho da Venezuela, Bolívia e Equador, convocando uma constituinte para refazer o pacto político nacional, visando compatibilizar a sua vitória com os compromissos assumidos? Em resposta, o ex-bispo e ex-discípulo do monsenhor Leônidas Proaño, um dos expoentes da teologia da libertação, nos disse que “o momento talvez não seja oportuno para a convocação de uma constituinte”. Muito embora “a necessidade seja real e possa ser sentida – o que pode tornar inevitável a instauração desse processo” (grifo nosso). Ao que pensei com os meus botões: de pleno acordo…

Já se levantava o presidente Lugo do seu assento à mesa, quando reiterei, algo constrangido, a nossa principal questão, relativa aos brasiguaios: “Presidente, quando teremos a ratificação (que os diplomatas chamam “depósito”) dos acordos de residência e regularização migratória do Mercosul?” O presidente tornou a sentar-se, olhou-nos alguns instantes e pediu ajuda ao vice-chanceler ao seu lado e ao qual fizéramos, momentos antes, a mesma pergunta.  “Estamos estudando e trabalhando sobre isso, não é?” Jorge Lara Castro, o vice chanceler, assentiu com a cabeça e um monossilábico “si”. Estava encerrado o nosso encontro.

À saída, posamos para fotos simpáticas e confraternização usual. Do lado de fora, percorrendo o caminho que nos levava do prédio à portaria e passando por jardins e equipamentos agrícolas dispersos, lembrei-me de uma frase do gentil presidente que acabáramos de conhecer. Falando sobre a necessidade fortalecer os nossos vizinhos, disse-nos ele: “um vizinho pobre é sempre um perigo, pois poderá comer a sua galinha!”

A seguir: DIÁRIO DE VIAGEM IV – Itaipu: muita água ainda vai rolar