Ainda somos socialistas? Carta aberta ao Presidente Roberto Freire | Raul Jungmann

Ainda somos socialistas? Carta aberta ao Presidente Roberto Freire

Prezado Roberto, A proposta de resolução política do XVI Congresso Nacional do PPS não dedica nenhum dos seus capítulos, nenhuma das suas seções, nenhuma das suas propostas ao tema do socialismo.

Salvo uma referência histórica – “um legado que recebemos do PCB” -, o termo socialismo não aparece uma única vez em todo texto, aliás, a exemplo do que já acontecera quando do XV Congresso do PPS. 

Qual a razão disso?

Afinal, somos socialistas no nome e nos identificamos enquanto tal. Quando narramos a nossa história, enfatizamos nosso passado comunista e o nosso presente socialista. Aliás, é a partir da nossa identidade que criticamos, nos aliamos ou competimos, com liberais, social-democratas, social-liberais ou democratas cristãos, em torno de um projeto para o país e o mundo.

Verdade que o socialismo vive momentos difíceis, seja enquanto possibilidade histórica, seja enquanto conceito. Porém, isso já nos aconteceu antes, sem que deixássemos de sê-lo ou de acreditar na sua promessa e possibilidades.

Como proposta originada da sociedade industrial do século XIX e diante das radicais transformações porque passou o mundo de lá para cá, sem dúvida, nosso ideário está a requerer ampla revisão e atualização. Certamente, assim como todas as demais propostas e programas políticos que lhe são contemporâneas, como a social-democracia e o liberalismo, o qual a vive uma das suas grandes crises cíclicas.

Abordo em público esse tema, Presidente, não pelo prazer de polemizar às portas do nosso Congresso. Mas porque me ressinto, e acredito que muitos companheiros mais, dos efeitos nocivos, decorrentes desse progressivo alheamento e distanciamento do que, afinal, nos distingue (ou ao menos deveria distinguir) no cenário político brasileiro : o socialismo.

Abordo porque nesse alheamento vejo a raiz da nossa ambiguidade, da nossa relativa falta de diferenciação e um sério óbice ao nosso crescimento, enquanto partido da esquerda democrática.

Claro, nem de longe reduzo à nossa identidade a matriz de todas as nossas falhas e restrições, pois têm elas origens outras, seguramente importantes.
Mas, se não temos identidade definida, ficamos sem cara, ou com uma que é semelhante a dos demais, nessa geléia partidária em que padecemos.

Exemplo disso são as nossas recentes resoluções. Elas poderiam ser tranquilamente assumidas por qualquer partido social-democrata, social-liberal ou mesmo, qualquer partido situado à esquerda do centro democrático. E, se é assim, porque optar por nós e não por eles? Uma vez que eles são maiores, muitas vezes melhor estruturados e eventualmente no poder? Porque somos um partido “decente”?

Tempo houve, Presidente, em que essa autodefinição seria tachada de udenista ou pequeno burguesa por afinidade com certo moralismo oportunista e anti-getulista. Hoje, os tempos são outros, sem dúvida, e a degradação ético-política em que mergulhamos torna a decência, anteriormente algo obrigatório e intrínseco, em alguma coisa a ser destacada e perseguida. Mas, sinceramente, ela não nos basta e é claramente insuficiente para nela ancorarmos nossa identidade.

Como também não é o bastante invocar o nosso passado. Até porque, mais e mais dele nos distanciamos, seja no tempo, seja quanto ao mundo em que vivemos. Além disso, sinceramente, sua invocação é hoje mais um ritual coletivo, quando não individualmente declaratória de bons antecedentes e pertencimento.

A história e o passado, sem dúvida, se constituem em raízes, bases, sobre as quais erguemos a nossa identidade presente. Mas é na resposta aos desafios e dilemas, nas ambiguidades e conflitos do presente e do futuro que afirmaremos nossa identidade, nossa cara.

Pode um partido de esquerda chegar ao poder sem uma clara identidade e propósitos definidos? A resposta é sim, vide o PT. Que para tanto e talvez por isso, abriu mão de alguns dos conteúdos essenciais do seu programa, adaptando-se ao que propunha transformar; quando não degradou, como é o caso da política, o que já estava a exigir reformas.

Conosco será diferente, Presidente? Sem identidade e fins claramente definidos conseguiremos transformar o Brasil? Se e quando chegarmos um dia ao poder, não nos deixaremos corromper pelas exigências da nossa metade arcaica, suas elites, da governabilidade e do passado, sem um norte, sem um porto? Deveremos chegar ao poder sem face definida e sem um programa claro e exequível, apoiado num amplo leque de forças sociais e políticas?

Aliás, é possível ter um programa, propósitos, políticas consistentes e transformadoras sem se saber o que somos?

Se temos o socialismo no nome do nosso partido e a partir dele reivindicamos nossa razão de ser, e se calamos e nada dizemos sobre o que ele é e se propõe ser para a nação, se nossas teses e resoluções nada dizem sobre ele, então estaremos incorrendo numa fraude. O que não é nem nunca foi do nosso feitio.

 Concluindo, Presidente, gostaria de lhe propor e ao partido, que nesse XVI Congresso Nacional pudéssemos discutir essa questão, ou ao menos iniciar seu debate, já que ela não está em pauta. Complementarmente, propor a realização de um congresso extraordinário em 2010 ou, caso impossível em razão das eleições, em 2011, para que, em toda sua extensão, complexidade e necessidade, enfrentarmos essa questão e respondermos à pergunta que irá nos (re)definir: afinal, ainda somos ou não socialistas?

Atenciosamente, 

Raul Jungmann