O CONFLITO NO SURINAME | Raul Jungmann

O CONFLITO NO SURINAME

O Suriname foi colônia holandesa desde o século XVII, condição que o acordo de Breda de 1667 veio a confirmar, ao término da segunda guerra entre Inglaterra e Holanda, a qual durou quatro anos. Por esse acordo, os ingleses ficavam com Manhattan e os holandeses com o lucrartivo comércio do run.

A antiga colônia tornou-se independente em 1975 e, de lá prá cá, teve uma história agitada, sobretudo após o golpe de Desi Bouterse em 1980, cujos efeitos ainda não cessaram de todo.

Boa parcela da sua população é de descendência indiana, a qual também é expressiva na Guiana e no departamento francês de ultramar, a Guiana Francesa. Os demais são quase todos mestiços ou indígenas.

O conflito entre brasileiros e surinameses pode ser visto como um incidente isolado ou como parte de algo mais amplo. Isoladamente, um brasileiro teria  morto um quilombola, descendente de escravos, gerando uma reação violenta contra uma comunidade de garimpeiros brasileiros, sem vítimas fatais.

De modo amplo, o episódio se insere no amplo painel de conflitos envolvendo brasileiros que vivem no exterior e nacionais de outros países, que tende a se intensificar. A outra perna do conflito é a expansão do capital nacional sobre os mercados do subcontinente.

Como exemplo do primeiro problema, temos os brasiguaios no Paraguai, aonde já são mais de 250 mil e ocupam terras produtivas reivindicadas pela comunidade local. Eu os visitei este ano.

Na Bolívia, além dos produtores agrícolas do departamento de Santa Cruz de La Sierra, que visitei por duas vezes, existem conflitos outros nas províncias de Tarija, Pando e Beni. Com destaque para os brasileiros que vivem em faixa de fronteira e que estão sendo relocalizados no governo do presidente Evo Morales.

Com o Equador e com a Bolívia, temos problemas outros derivados da atuação das nossas empresas, Camargo Correia e Petrobrás, respectivamente. Já com os argentinos, o conflito é mais antigo e difuso, pois envolve a ameaça de desindustrialização, face à baixa competitividade dos portenhos em diversas cadeias produtivas, o que tem levado o Mercosul a seguidos impasses.

Em todos esses países, a presença brasileira tem crescido, seja via negócios, exportação de capitais ou ainda contratos de infra-estrutura. Nesse último caso, apenas na Venezuela os investimentos privados já chegam a mais de US$ 20 bi.

Essa expansão de capitais nacionais para a América do Sul é bancada pelo BNDES, através de linhas de crédito amplas e que tem se diversificado. Essa relação entre um banco estatal de investimentos e grandes empresas nacionais não é de agora. Mas tem se aprofundado vertiginosamente no governo Lula, numa clara aliança política entre o petismo, o empresariado nacional – com o protagonismo das empreiteiras -, e a alta burocracia do banco.

Essa aliança possui dois efeitos, um externo e o outro interno.

Externamente, ela incorpora espaço e recursos sul-americanos à esfera de influência e atuação do grande capital nacional, outorgando a este mercados e ampliando a sua escala em nível transnacional, base para vôos mais altos.

Internamente, a atuação do BNDES, politicamente orientada, elege setores e empresas que serão mais dinâmicos e competitivos, vis a vis os demais. E cimenta, juntamente com os fundos de pensão, uma aliança entre o PT e o grande capital nacional, outrora um quase monopólio tucano.

Essa dinâmica – econômica, política e  populacional – tende a reverter dois paradigmas históricos. Um, a nossa baixa prioridade e fluxo de transações com a América do Sul, a exceção do cone sul. Dois, a “excentricidade” sul-americana e nossa, baseada numa retórica de integração regional, mas de um verdadeiro acoplamento às economias da Europa e EUA.

Esses movimentos trazem consigo problemas e dilemas. Talvez o maior deles seja como manter o nosso perfil de “império benigno” nas palavras de José Natanson (1) e consolidar nossa liderança regional, base para uma projeção global. E subsidiariamente abrir espaços para nossas empresas e os conflitos daí decorrentes.

Voltando ao tema inicial, para alguns países a presença física de brasileiros constitui-se em ameaça difusa à soberania dos nossos vizinhos. Em outros, é a chegada de capitais e empresas brasileiras o foco das tensões. Por fim, caso de Honduras, é a ingerência política a razão do mal estar.

Esse sumário balanço aponta para o crescimento dos conflitos e do ônus da liderança regional ambicionada pelo Brasil. Aponta também para a necessidade de revermos nossas concepções diplomáticas e estratégicas. Desde as mais ricas e sedimentadas em fins do século XIX e início do século XX pelo Barão de Rio Branco, até as mais recentes, pós guerra fria.

Os conflitos como os da semana passada no Suriname tendem a ampliar sua freqüência. Disso não tenhamos dúvida. E é neles que vamos ser testados a dizer qual a nossa liderança, se imperial ou benigna.

(1) La Nueva Izquierda, editora Editorial Debate