Diário de viagem XVIII: “Melhor um acordo que uma guerra civil” | Raul Jungmann

Diário de viagem XVIII: “Melhor um acordo que uma guerra civil”

À nossa esquerda estava o presidente do Senado da Bolívia, Oscar Ortiz, e à nossa frente Tito Hoz de Vila, presidente da Comissão de Relações Exteriores, ambos do PODEMOS, partido de oposição.

 

“Eram 150 mil pessoas aí em baixo, na praça, cercando o Congresso. Não sei o que poderia acontecer. Estávamos encurralados. Não foi um acordo de conciliação nacional, mas uma nova imposição do governo”, afirma o jovem presidente do Senado.

 

“Veja, bem ou mal, o acordo é melhor que a Carta de Oruro, que era uma atrocidade. Mas não creio que o governo venha a cumprí-lo, como não cumpre a atual Constituição.”

 

Os dois senadores falavam com gravidade, sem pressa. Na sala onde estávamos, estreita e comprida, cabia apenas a mesa de reuniões e cadeiras. As janelas, todas fechadas, reforçavam a sensação de isolamento político em que eles se encontravam.

 

O Presidente Ortiz fez questão de agradecer a mediação do presidente Lula durante os conflitos de agosto e setembro,  que contribuiu para que se iniciasse o diálogo que  levou ao acordo.

 

“Agradecemos também a acolhida do Brasil aos refugiados de Pando que estão no Acre. Pena que nosso governo esteja se afastando de aliados tradicionais, como o Brasil, e aproximado-se da ALBA (aliança de países próximos  da Venezuela). Aliás, nós perdemos o empreendimento da Brasken por conta da Venezuela, porque o Chávez foi contra.”

 

Tito Vila tomou a palavra. De estatura mediana, robusto, olhos claros, vestido elegantemente, o presidente da Comissão de Relações Exteriores, com sua voz de barítono, foi duro ao falar.

 

“Evo está comprando briga com a Igreja (católica). Ontem, a aprovação da nova Carta seria de 70%. Hoje, não mais. Quanto aos conflitos de Pando (que resultaram na morte de dezenas de pessoas), pedimos a vocês que interfiram. O coordenador dos trabalhos, Mazzarolo, indicado pela presidente da Argentina, é totalmente parcial. Aqui, nesta sala, nos faltou com o respeito. E o representante do Brasil (um funcionário do Ministério do Desenvolvimento Agrário), nos pareceu totalmente subordinado a ele. Então, é preciso que esse relatório, que será apreciado em Sauípe, na cúpula dos presidentes da América do Sul, seja revisto.”

 

Quanto às perspectivas do “sim” no referendo do dia 25 de janeiro, Oscar Ortiz e Tito de Vila concordaram que Evo deveria sair-se vencedor, uma vez mais. Porém não com os percentuais anteriores. Quanto ao futuro, o objetivo da oposição é formar um bloco unido, coeso, capaz de impedir que nas eleições gerais de dezembro o MAS, partido de Morales, alcance os dois terços que lhes daria condições de realizar quaisquer mudanças constitucionais.

 

O presidente da Câmara nos aguardava. Tínhamos que nos despedir. Já de pé, Oscar Ortiz reiterou  a importância do Brasil para a solução dos impasses de seu país.

 

Senado e Câmara ocupam o mesmo prédio. Logo, da sala onde estávamos até o gabinete do presidente da Câmara são apenas algumas centenas de metros, porém labirínticos.

 

Vários corredores, salas e antesalas depois, estávamos num amplo salão, com pé direito alto, colunas no centro, muitos sofás e tapetes tidos como persas.

 

Já nos aguardava o presidente da comissão de Relações Exteriores da Câmara, deputado Michiaki Nagatani, chegando logo a seguir o presidente da Câmara, Edmundo Novillo, do MAS.

 

Seguiu-se a nossa abertura de praxe, com o deputado Marcondes Gadelha fazendo as apresentações e discorrendo sobre nossos propósitos.

 

O presidente Novillo, de jeans, mocassins, blusão de couro e camisa xadrez, contrastava com o terno escuro e formal do colega Nagatami. Loquaz, iniciou ressaltando que a nova Carta garantiria a preservação das identidades nacionais indígenas em um estado plurinacional, incluindo os indígenas na vida social, política e econômica da Bolívia. Quanto às autonomias, afirmou: 

 

“Chegamos a um bom acordo. Claro que com algumas insatisfações, sobretudo em Sta. Cruz. Lá existem lideranças que acalentam projetos que comprometem a unidade do Estado, o que jamais poderia ser aceito.”

 

Quanto à economia local, Novillo disse que a Bolívia possui grande diversidade econômica e que a nova Carta prevê que o Estado seja o motor da economia, sem abdicar da presença da iniciativa privada nacional ou internacional.

 

“Aliás, a propriedade privada, é bom lembrar, não é um bem absoluto. Porém, será sempre respeitada quando cumprir sua função social. Já as terras irregulares, e existem muitas em Sta. Cruz e Beni, serão arrecadadas para a reforma agrária, sem dúvida.”

 

Perguntei-lhe então como se dariam as eleições diretas para o Judiciário, incluso para a mais alta Corte do país.

 

Edmundo Novillo defendeu entusiasticamente a eleição direta para a alta magistratura, por ser democrático e evitar influências políticas. Retruquei como seria possível evitar influências com candidatos competindo entre si e buscando apoio em todos os níveis, tanto no setor público quanto no privado.

 

O Presidente parou para pensar uns segundos e respondeu que as campanhas seriam proibidas e estritamente controladas por um comitê nacional de representantes.

 

Foi a vez de Cláudio Cajado indagar como via o processo de integração regional e que prioridade atribuía à UNASUL, ao MERCOSUL e à ALBA.

 

Ele nos respondeu que a integração da América do Sul é fundamental. E complementou:

 

” A UNASUL é uma idéia genial, que trará independência para todos nós. E não vejo problemas de convívio com outras iniciativas, como a ALBA e o MERCOSL. Em todos esses fóruns o Brasil tem papel de destaque e deve seguir buscando sua consolidação. Em contrapartida, o CAN vai mal, o que é uma pena.”

 

Um ajudante de ordens lhe confidenciou algo ao ouvido e entendemos que nossa audiência se encerrara.

 

Refizemos o serpenteante caminho rumo à saída do Congresso boliviano e após ultrapassarmos os derradeiros e pesados portões de madeira, chegamos novamente a la calle.

 

Automóveis, transeuntes e policiais se mesclavam nas calçadas,  ruas e na praça Murillo à nossa frente. À direita, qual uma efígie, o palácio Quemado, sede da Presidência da República da Bolívia.