Desmatamento de Suape: desmontando a conversa do governo | Raul Jungmann

Desmatamento de Suape: desmontando a conversa do governo

Por Robson Fernando para o Blog Acerto de Contas
Recentemente o Governo de Pernambuco publicou uma nota de “esclarecimento” sobre o desmatamento de mais de 1000 hectares que quer promover nos arredores do Porto de Suape. A mensagem oficial não passou de mero trololó.

Recentemente o Governo de Pernambuco publicou nos jornais e em alguns blogs de grande público uma nota de “esclarecimento” sobre o desmatamento de mais de 1000 hectares que quer promover nos arredores do Porto de Suape. Talvez tenha soado convincente para quem não tem muito apego à crescente discussão contemporânea de temas ambientais e para quem quer ver Pernambuco se desenvolvendo a qualquer custo. Mas definitivamente não enganou ninguém que esteja devidamente por dentro do assunto e queira que a Terra permaneça habitável para si e para as gerações futuras.

Os argumentos utilizados no comunicado foram bastante fracos e insuficientes para dissuadir as pessoas mais preocupadas de sua aflição em relação ao antiambientalismo do governo Eduardo Campos. Em outras palavras, a mensagem oficial não passou de mero trololó.

Para abrir os olhos da parcela da sociedade que deixou o governo pensar por ela, comento e refuto cada um dos sete pontos que constam na nota do governo sobre aquele que, se acontecer, será um verdadeiro ecocídio que, além de causar perdas irreversíveis no ecossistema litorâneo pernambucano e a marginalização dos extrativistas que dali tiram seu sustento, manchará para sempre a reputação do atual governador e dos deputados que o apoiam nesse episódio.

Vamos aos pontos.

“1. Como é público e notório, a área portuária de SUAPE se apresenta como de fundamental importância ao cenário de desenvolvimento socioeconômico em que o Estado de Pernambuco se encontra inserido, englobando áreas e empreendimentos que precisam da necessária e indispensável expansão de sua infraestrutura.”

É observável que o tal “cenário de desenvolvimento socioeconômico” não inclui a melhoria das condições de vida das pessoas humildes que pescam e extraem frutas silvestres no manguezal e fragmentos de mata atlântica e restinga daquele local, muito pelo contrário. O tal desenvolvimento será, se muito, a instalação de grandes empresas no local, a geração de empregos para pessoas de bom currículo e o aumento da arrecadação para o governo estadual. Nada que inclua diretamente a parcela mais humilde da população pernambucana.

E pergunto: que desenvolvimento socioeconômico é esse que, sem pudor, se sustenta no desrespeito ético ao valor intrínseco do meio ambiente, na destruição implacável e intransigente de áreas e mais áreas de ambiente natural, na provocação de prejuízos à manutenção da vida da fauna marinha e terrestre e também na exclusão social de pessoas que vivem da comunhão com a natureza?

“2. Considerando a utilidade pública e o interesse socioeconômico do processo de urbanização das Zonas Industriais e Portuárias, assim há muito reconhecidas pelo Decreto Federal nº 82.899/1978 e pelos Decretos Estaduais nºs 2.845/1973, 4.433/1977 e 4.928/1978, não há dúvidas de que o Projeto de Lei em questão se encontra juridicamente fundamentado, seja no art. 225, inciso IX, da Constituição Federal, que exige a edição de lei específica para a supressão vegetal, seja na legislação federal, assim como na legislação estadual – Lei nº 11.206, de 31 de março de 1995 -, editada no legítimo exercício da indisponível competência do Estado de Pernambuco para legislar em matéria ambiental, prevista no art. 24, VI, e parágrafos, da Constituição Federal.”

Os decretos em questão foram criados em uma época em que o meio ambiente era considerado um mero estorvo para o progresso econômico humano, tempo em que a própria educação ambiental era assunto proibido por um regime militar ultracapitalista, o qual queria transformar o Brasil em potência a todo custo e calava à força quem discordasse de sua metodologia político-econômica.

Sem falar que os mesmos de jeito nenhum correspondem às preocupações e critérios socioambientais de hoje. Considere-se que todos foram sancionados antes da:

Lei de Zoneamento Industrial nas áreas críticas de poluição – 6.803/1980
Lei de Política de Meio Ambiente – 1981
Lei de Gerenciamento Costeiro – 7.661/1988
Lei de Criação do IBAMA – 1989
ECO – 1992
Lei de Recursos Hídricos – 1997
Lei de Crimes Ambientais – 9.605/1998
Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – 9.985/2000
1ª. Conferência Nacional de Meio Ambiente – 2003
Política Nacional de Combate às Mudanças Climáticas

Quanto ao tal inciso IX do Art.225 da Constituição, ele não existe. Provavelmente foi erro de digitação e a pessoa que elaborou a nota queria se referir ao inciso IV do mesmo artigo, que exige, “na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade”. Ou queria se referir ao III, que define, “em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção”.

E há o agravante de que o inciso III veda a utilização do espaço natural a qual comprometa a integridade das razões pelas quais a proteção ambiental local é necessária. Pelas constatações do professor de zoologia da UFPE Ralf Schwamborn, a destruição do mangue e a deformação do estuário local causarão “impactos drásticos e permanentes sobre o meio físico, geológico, biótico e antrópico, em escala local e regional”, o que já torna o desmatamento de Suape inconstitucional, já que comprometerá os atributos que justificam a preservação do local.

E, para dar à alegação do governo um caráter de tiro no pé, o citado inciso IV exige a publicidade do EIA/Rima, algo que não aconteceu efetivamente no caso do desmatamento de Suape, uma vez que toda a população foi pega de surpresa com o anúncio do Projeto de Lei 1496/10 – se houve a devida publicação lá em 2000, os dez anos que se passaram já anularam a ciência do relatório de impacto ambiental por parte da população, uma vez que foi tempo bastante para quase todos o esquecerem.

Em relação à lei estadual 11.206/95, o Artigo 8º diz que “é proibida a supressão parcial ou total da vegetação de preservação permanente, salvo quando necessária à execução de obras, planos ou projetos de utilidade pública ou interesse social e não exista no Estado nenhuma outra alternativa de área de uso para o intento” (grifo meu). Ambientalistas argumentam que existem sim, no território pernambucano, áreas utilizáveis sem vegetação nativa – como áreas de canavial que poderiam ser compradas pelo governo –, e o governo mantém o silêncio sobre se realmente existem ou não essas áreas.

“3. É importante destacar que a referida Lei Estadual nº 11.206/1995 condiciona a supressão vegetal à compensação com a preservação ou a recuperação de ecossistema semelhante, em área no mínimo correspondente à degradada (o que está resguardado no art. 2º do Projeto de Lei em questão), bem como à elaboração de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) e a sua aprovação pelo órgão competente, o que, no caso de SUAPE, deu-se através do Parecer nº 05/2001, da Agência Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (CPRH).”

A mera preservação de área de tamanho semelhante ou maior é um subterfúgio um tanto covarde para o fato de que não haverá como replantar o mangue a ser destruído em outro lugar, uma vez que não existe mais área litorânea disponível para se recompor mangue perdido. É um disfarce que funciona para olhos desatenciosos, mas não para pessoas esclarecidas.

Derruba-se uma área natural e diz-se que vai preservar outras. Mas, considerando que a área ameaçada já é de proteção permanente, o que impedirá o governo de declarar as outras como áreas de “utilidade pública e interesse socioeconômico” no futuro e destruí-las também?

Quanto ao EIA/Rima e ao Parecer 05/2001, eles, além de já serem muito antigos (quase dez anos), não são encontrados com links fáceis nos sites do governo estadual – isso se sequer existirem na internet. Por que o governo não os torna públicos, de fácil acesso, de modo que a sociedade civil e as entidades ambientalistas possam analisá-los e declará-los plausíveis ou implausíveis?

“4. O EIA/RIMA do Projeto Básico para a Ampliação e Modernização de SUAPE foi elaborado com vistas à ampliação da capacidade e melhoria do Porto e efetivamente abrangeu as áreas destinadas à implantação de futuros projetos, inclusive aquela destinada à indústria naval (estaleiros), contemplando, a partir do diagnóstico dos meios físico, biótico e antrópico, uma gama de atividades projetadas susceptíveis de sofrer, direta ou indiretamente, os efeitos dos possíveis impactos durante as fases de implantação das obras e de operação dos empreendimentos ali previstos para o futuro, o que pressupõe a supressão de vegetação ora debatida.”

Os atuais projetos da indústria naval nem existiam em 2000, época do EIA/Rima. A oposição e os ambientalistas argumentam, ao invés, que a área referida era originalmente destinada à urbanização. Peço que o governo comente essas alegações.

E pergunto também: se o governo previu impactos antrópicos, físicos e bióticos, por que não mostrou a público, nem no próprio PL 1496/10, como vai remediar a possível piora dos ataques de tubarão nas praias da Grande Recife, a erosão marinha que poderá agravar-se, a perda da biodiversidade no espaço oceânico local – considerando o estuário como berçário de fauna marinha – e o desemprego em que os pescadores e extrativistas locais vão ser mergulhados?

“5. Observa-se, portanto, que a supressão de vegetação objeto do Projeto de Lei decorre diretamente de EIA/RIMA regularmente aprovado, mostrando-se como uma etapa do processo de desenvolvimento sustentável há muito prevista e debatida com a sociedade pernambucana.”

O tal “processo de desenvolvimento sustentável” simplesmente não existe no governo atual. Como um governo que vem destruindo quantidades razoáveis de vegetação para construção de estradas e pontes e sendo conivente com o desmatamento ilegal em vários locais de Pernambuco, além de propor aquela que será a maior devastação de toda a história pernambucana moderna e o maior desmatamento de mangue de todo o Brasil, pode dizer que está promovendo “desenvolvimento sustentável”?

E o trecho “há muito prevista e debatida com a sociedade pernambucana” é uma inverdade, porque, como já foi dito, a população e as ONGs ambientalistas e sociais foram pegas de surpresa com o anúncio do PL 1496/10. Se tivesse sido previsto e debatido “há muito” com a sociedade, por que então os moradores de Ipojuca (além de toda a população ambientalmente esclarecida de Pernambuco) estão apavorados com essa ameaça de desmatamento recorde?

O que tivemos de debate entre o governo e a população foram uma ou duas audiências públicas na Assembleia Legislativa e uma reunião a portas abertas no SECTMA, isso num intervalo de poucos dias. Antes disso, não houve nenhuma discussão, nenhum anúncio da pretensão de destruir mais de 1000 campos de futebol foi feito à população. A decisão de desmatar passou muito longe da democracia que preconiza que “todo o poder emana do povo”.

“6. Como se vê, o Projeto de Lei em questão está em consonância com o arcabouço legislativo ambiental, e, uma vez aprovado, como se espera, pelo Parlamento pernambucano, revelar-se-á como o instrumento legalmente previsto pelo Estado Democrático de Direito para concretizar o desenvolvimento sustentável da região e do Estado de Pernambuco como um todo.”

Conforme foi explicado em relação aos cinco pontos anteriores, isso não passa de trololó, de palavras vazias, de conversa que mesmo os mais ingênuos relutam de aceitar.

“7. Superado o exame jurídico, entende-se que o grande debate com a comunidade ambiental, aí incluídas, entre outros, as instituições acadêmicas, as ONG’s e os segmentos da sociedade civil, ocorrerá para contribuir com a elaboração e a implantação do plano de compensação ambiental, previsto no Projeto de Lei em questão como condição para a efetivação da supressão da vegetação, fórum este adequado e recomendado às proposições que efetivamente contribuam para a viabilização do desenvolvimento socioeconômico do Estado, observados os princípios que regem o meio-ambiente e a sustentabilidade, tão preciosos para o Governo de Pernambuco quanto a melhoria contínua dos indicadores econômicos e sociais.”

O exame jurídico não teve acurácia, visto que, mesmo com as flagrantes contradições da ameaça de desmatamento com a lei estadual e federal, muitas delas incisivamente abordadas pelo deputado Pedro Eurico na reunião ordinária da Comissão de Constituição e Justiça no último dia 20, a obsolescência das normas jurídicas que sustentam esse ecocídio perante os eventos e pactos ambientais dos últimos trinta anos e a falta de unanimidade na interpretação da lei, o PL 1496/10 foi aprovado pela mesma Comissão.

Além disso, como já foi dito mais acima, não houve nenhum “grande debate”, mas sim debates pequenos demais para representarem alguma disposição do Governo de Pernambuco em ouvir a população que não quer que o desmatamento aconteça.

E o tal plano de compensação ambiental, como já falado, além de não ser algo democraticamente deliberado, visto que constou lá no obscuro e antigo EIA/Rima de 2000, não convém para o meio ambiente, visto que o mangue local e a biodiversidade estuarina serão aniquilados e nunca repostos. Nem para a sociedade, que precisa de um meio ambiente íntegro e preservado para sobreviver, nem para os pescadores e extrativistas que atuam nas vegetações e águas da localidade a ser devastada.

O trecho final – “tão preciosos para o Governo de Pernambuco quanto a melhoria contínua dos indicadores econômicos e sociais” – certamente não inclui o desemprego aonde serão atirados os referidos pescadores e extrativistas. E, fora do senso comum que acredita que o progresso de Suape será “tudo de bom”, o que existe é incerteza se a expansão do porto realmente trará tantos empregos e divisas para a economia pernambucana, visto que falta no mercado local gente qualificada o bastante para trabalhar nos novos empreendimentos que vêm sendo anunciados. A certeza existente é que aumentará a arrecadação do governo estadual.

Em resumo, o comunicado do Governo de Pernambuco não passou de uma enrolação que não enganará mais ninguém. O mesmo conta com a ignorância e a alienação socioambiental de grande parte da população para que seu magnum opus, a destruição dos mais de 1000 hectares de vegetação litorânea, triunfe e deixe a biosfera, incluindo a humanidade, em situação ainda mais séria do que hoje.

O governo, com seu trololó, tenta defender o indefensável com argumentos toscos e facilmente refutáveis, acreditando que aceitaremos qualquer coisa que seja dita acompanhada da logomarca sua e de Suape. Nós, como cidadãos que querem continuar vivendo e têm respeito à natureza, devemos mostrar que não aceitamos esse “escurecimento” (contrário de esclarecimento).

Não se conforme com essa ameaça de destruição ambiental massiva, aja enquanto é tempo. Procure saber mais sobre ela nos blogs pernambucanos e com seus contatos ambientalistas, e levante sua voz contra o desenvolvimento insustentável e predatório.

*Robson Fernando é graduando em Ciências Sociais pela UFPE e dono do blog Arauto da Consciência