O Haiti é aqui | Raul Jungmann

O Haiti é aqui

Quando anunciei que abriria mão de parte das minhas emendas em benefício do povo do Haiti recebi, para minha surpresa, algumas críticas.

Sinteticamente, me perguntavam o que tínhamos feito pelas vítimas de Angra do Reis, da baixada fluminense, pelo sertanejo do semiárido e, já agora, pelas vítimas das águas no agreste pernambucano. Em resumo, por que ajudar uns, haitianos, e não outros, brasileiros, que também eram vítimas?

Me ocorrem duas considerações a estes questionamentos.

A primeira delas é de que se eu atendesse às vítimas do Haiti, as de Angra, da baixada etc, ainda assim centenas, talvez milhares de dramas outros ficassem de fora, não é mesmo?

Donde se conclui que não está na escala humana, só na divina, atender a todos os que necessitam. Portanto, e do ponto de vista dos que fizeram a crítica, sempre seremos passíveis de uma censura por um ato de solidariedade com alguém, um grupo, povo ou nação. Não tem escapatória.

Por essa ótica, toda ação de ajuda a quem necessite, por não ser “totalmente abrangente” ou para todos, é um ato errado, ainda que parcialmente.

Nesse ponto chegamos a uma conclusão inescapável, que é a seguinte: para não correr o risco de errar e/ou cometer injustiças ou exclusões, só nos resta ser egoístas e não solidários…

A segunda consideração decorre da crítica de ter acudido “estrangeiros” em lugar de “nacionais”. Donde se pode inferir que “nós”, nacionais, temos precedência sobre “eles”, estranhos,  mesmo que fossem vidas que estivessem em jogo.

Se você tivesse ao seu alcance duas crianças pequenas, uma haitiana e outra brasileira, necessitando de cuidados, qual delas você atenderia primeiro? A “nossa” criança  ou a “deles”? Ou aquela, independentemente da sua nacionalidade, que estivesse precisando de cuidados mais imediatos e urgentes?

Se você respondeu “a nossa”, ao fazê-lo jogou fora tudo aquilo que denominamos de valores humanitários, incluso a extraordinária contribuição do cristianismo e o exemplo de Jesus Cristo, que se sacrificou por todos nós, gentios ou não, igualmente e sem distinções.

Se, ao contrário, você tomou a segunda decisão, de atender primeiro aquela criança que inspirava maiores cuidados, parabéns. Ao fazê-lo, seu gesto reafirmou que a humanidade é una e indivisível, e que todos, homens e mulheres, são iguais na sua dignidade essencial e na vida.

Para mim, quando se trata da vida, e da solidariedade, não existe “nós” e “eles”, não há diferença. Ninguém é de primeira ou segunda classe. Há apenas uma e só uma classe, única, a de todos, sem exceção ou distinção.

Aliás, lembro, foi por pensar diferente, em termos de “nós” e “eles”, que Adolf Hitler promoveu o holocausto, matando seis milhões de judeus, 18 milhões de russos e quatro milhões de poloneses em campos de extermínio.

Raul Jungmann