DIÁRIO DE VIAGEM XVI – Carlos Mesa e à mesa com as empreiteiras | Raul Jungmann

DIÁRIO DE VIAGEM XVI – Carlos Mesa e à mesa com as empreiteiras

Em 17 de outubro de 2003, o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada renunciou e seguiu para os Estados Unidos.

 

Carlos Mesa, seu vice, assume a presidência e, de abril de 2005 em diante, foi sendo progressivamente emparedado por Evo Morales. Até que na “guerra da água”, um movimento de massas para derrubar a alta da tarifa das “Águas de Ilimani”, uma empresa do grupo Suez, jogou a toalha. Negou-se a reprimir a onda de protestos, convocou uma Constituinte e renunciou em 6 de junho. Em seu lugar assumiu o presidente da Suprema Corte, que convocou eleições.

 

Pela manhã de segunda-feira, às 11 horas, recebemos o ex-presidente Mesa na residência do nosso embaixador. Alto, articulado e de fala rápida, ele fez um amplo retrato da Bolivia, do governo Evo e da conjuntura boliviana.

 

“A Bolívia era a sede do império Tihuanaco, formado por aymaras, quechuas e chiquitos. No século XV todas essas nações foram dominadas pelo império inca. Estes eram tratados pelos vencedores como senhores feudais, com poderes sobre seu território.”

 

“No início do século XVI, o espanhol Francisco Pizarro conquistou a região, anexando-a ao vice-reinado do Rio da Prata. A riqueza de prata em Cerro Potosi atraiu muitos colonos e levou à escravidão e à morte de incontáveis indígenas. O que detonou a revolta comandada por Tupac Amaru II no século XVIII.”

 

“O Alto Peru, como era chamada, foi uma das primeiras colônias a se rebelar contra o domínio espanhol, em 1809. Em 1828, tornou-se independente. Sendo a revolta liderada por Simon Bolívar, que foi seu primeiro presidente e deu seu nome ao nascente país.” 

 

“Na guerra do Pacífico, de 1879, a Bolívia perdeu o acesso ao mar para o Chile. Em 1903, vendeu o Acre ao Brasil, para, em seguida, na chamada guerra do Chaco com o Paraguai, tornar a perder parte do seu território.” 

 

Décio, ainda abatido, cochilava afundado numa generosa poltrona. Fiz sinal para Cássio, seu chefe de gabinete, que ele não deveria estar ali. Deveria estar se recuperando no hotel.

 

Naquele momento, Mesa chegara ao ponto de inflexão da história moderna da Bolívia – a revolução nacionalista de 1952 que tinha alçado ao poder Victor Paz Estenssoro, o que desembocou na nacionalização das minas, no voto universal e na reforma agrária.

 

Marcondes Gadelha queria saber quando a questão indígena tinha entrado na agenda nacional.

 

Carlos Mesa recordou que o sistema de servidão indígena tinha sido extinto apenas em 1947. “A recuperação da identidade indígena, do ponto de vista do governo, inicia-se nos anos 70 com Hugo Banzer. E tem no governo, tido como neoliberal de Sánchez de Lozada, o reconhecimento da plurinacionalidade, abrindo caminho para a representação política das nações originárias.”

 

“Há 30 anos atrás, um aymara não podia entrar em La Paz, sentar num banco de praça. Era proibido. Eu lembro que quando alguém vendia um pedaço de terra, junto com cerca, armazéns, bois, iam também as famílias de indígenas que lá habitavam. Então, a vitória de Evo é algo histórico, uma conquista. Agora ele, que poderia unir o país, o está dividindo irremediavelmente”.

 

Porque, perguntei.

 

“Por que… tomemos o exemplo dessa nova Constituição. A Bolívia teve diversas Constituições, que variavam em muitas coisas. Mas você tem um, digamos, padrão, uma continuidade nos aspectos centrais. Isso acabou. Essas autonomias, esse rebatimento da plurinacionalidade sobre as instituições, criando 4, 5 esferas autônomas de governo, não integra, antes fragmenta irremediavelmente o Estado. Veja só, você tem povos originários com apenas 30 pessoas, 14 pessoas! E, pela nova Constituição, eles são um estado dentro do Estado.” 

 

“E a oposição também tem errado. Jamais poderia ir para o terreno da confrontação, da força. Aí se perde a batalha e, mais importante, a razão”, refletia Mesa.

 

“Sta. Cruz jamais poderia pretender disputar para valer com Evo pondo alguém de lá para concorrer. Tinha que ceder para alguém que pudesse dar o combate no campo de Evo, ainda que tivesse que ceder a cabeça para alguém vindo do ocidente, do altiplano. Mas não, e aí está. Evo ganhará o referendo da nova Constituição em todos os departamentos, exceto um.”

 

Marcondes queria saber da pauta Brasil-Bolívia. As questões do gás, sobretudo.

 

O ex-presidente, porém, chama a atenção para um outro ponto, as hidrelétricas do Madeira: “O Madeira, em território boliviano, se constitui na maior e mais importante das nossas bacias. A Bolívia não pode deixar de se preocupar e assenhorar-se desse assunto, que é, para nós, tema de segurança nacional. E, lembrem-se, em temas ecológicos, e outros também, esse é um governo com fortíssima influencia de ONG´s internacionais.”

 

Àquela altura, os convidados para o almoço estavam chegando. Fred convidou o ex-presidente para almoçar conosco, o que foi aceito. E fomos todos para a mesa.

 

Lá, um jovem economista, Javier Aliaga Lordemann, nos brindou com uma análise dos impactos da crise global sobre a Bolívia. Segundo ele, o país se ressentiria da queda dos preços das suas exportações, num momento de ampliação de gastos já contratados e redução severa de novos investimentos.

 

Em seguida, a palavra foi franqueada aos convidados, todos representantes de empresas brasileiras com negócios na Bolívia.

 

Primeiro a falar, o representante da Petrobrás deu uma má notícia. O campo de Itaú, um dos de maior potencial, não será mais explorado pela estatal. Em seguida, queixou-se que seus executivos, incluso o chefe da companhia, tinham imensas dificuldades para renovar os seus vistos. Às vezes esperando até seis meses, o que é, claro, inacreditável.

 

A empreiteira Queiroz Galvão, que entrara em conflito com o governo boliviano por causa de uma rodovia, negociava com a OAS sua saída definitiva da Bolívia e o repasse dos seus negócios para a empresa baiana. Esta, amparada em sua tradição cultural e apoios políticos como deputados do MAS, partido do presidente Evo, e de membros da diplomacia boliviana acreditados no Brasil, provavelmente tentaria ficar com todo o mercado para si. 

 

Já o executivo da Odebrecht foi monossilábico e o diretor do Banco do Brasil entrou mudo e saiu calado.

 

Sobremesa servida, café tomado, era hora de cumprir a maratona de audiências previstas. Numa roda, antes de nos despedirmos, soubemos que cabia ao assessor presidencial Marco Aurélio Garcia ditar o rumo das disputas entre as construtoras e destas com os bolivianos. Interessante, não?

 

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