DIÁRIO DE VIAGEM XV – O Jacobino II | Raul Jungmann

DIÁRIO DE VIAGEM XV – O Jacobino II

“Eu me vejo como um dos últimos jacobinos da
Revolução Francesa
e vejo Evo como Robespierre.”

Álvaro Garcia Linera 

Álvaro Garcia Linera enfim respondia à pergunta de Marcondes Gadelha. Responder talvez não fosse bem o caso. Nosso presidente lhe indagara sobre as perspectivas para 2009, a situação da propriedade privada e a justiça na Bolívia. Em resposta, Linera enumerava os objetivos estratégicos do seu governo.

“A Bolívia vive um processo histórico, complicado e profundo. O qual gira em torno de três grandes temas: primeiro, a inclusão e o reconhecimento dos indígenas. Estamos criando um estado plurinacional, com a participação das comunidades originárias.”

“O segundo grande tema é o da descentralização administrativa. Os acordos da nova Constituição permitiram a criação de um “federalismo light”. A nova Carta cria um estado autonômico, com três grandes esferas de igual hierarquia constitucional: a departamental, a indígena e a municipal.”

“O terceiro tema é a consolidação do Estado como ator central do desenvolvimento econômico e a inclusão social. Assim, consolidamos o Estado como o motor da economia, sem afastar a participação da iniciativa privada. Em resumo, a nova Constituição é um projeto geracional, para o próximo século.”

Metódico, Linera não dava brecha para o encaixe de outras perguntas. Até que Cajado aproveitou uma breve pausa e perguntou como estava a conjuntura política, depois das tensas jornadas de agosto e setembro passados.

Ele sorriu e dissertou: “Os meses de agosto e setembro foram o instante do “momento de força”, quando o governo consolidou sua posição e a transição de um modelo de Estado para outro. Naquele momento, o governo estava preparado para tudo. E disposto a tudo. O ponto de bifurcação, o momento de força, como diz Sun Tzu, tinha chegado, como eu esperava. Mas nós estávamos dispostos e para muito mais… Nos preparamos para tudo e o faríamos.“

“A confrontação não partiu de nós, mas da direita. E nós estávamos a postos, desde a mobilização popular até o engajamento do exército. Hoje o pior já passou” – sorriu.

“Hoje o grande conflito estrutural do Estado está vencido. A oposição está dividida. Os “prefectos” estão divididos.” 

Marcondes retomou a palavra e insistiu no tema da Justiça, que lhe aguçava a curiosidade.

“Quem indica os postos no judiciário? São as forças, os partidos políticos, de acordo com o seu peso. Aliás, o judiciário é uma das estruturas antigas menos afetadas pelo processo de mudança, mas isso será corrigido agora pela nova Carta. A alta magistratura, os tribunais superiores, serão preenchidos por eleição direta, popular, após seleção congressual.”

Cajado, após fazer uma exposição dos problemas da violência e da droga nas nossas grandes cidades, indagou ao Vice como pretendia o governo boliviano combater o narcotráfico.

Garcia Linera mudou de posição na cadeira, cruzando as pernas e sorrindo sempre, respondeu: 

“A Bolívia é o país que mais avançou nessa questão. Tivemos a maior redução percentual de área de cultivo ilegal. Agora, não queremos politizar esse tema, como vinha fazendo o DEA. Eles espionavam, se articularam com a oposição, com os golpistas. Eles tinham carta branca e o que fizeram? Queremos a colaboração do Brasil nessa área e de outros países. E estamos abertos para fazer todo o necessário, tudo que for preciso!” 

Eu me mantivera calado. Apenas observando. Não tinha, como já disse, grandes expectativas. Conhecia razoavelmente o repertório de respostas do nosso anfitrião. Fui para o córner oposto. Perguntei-lhe como, à luz dos clássicos, era possível pensar um país como a Bolívia construir o socialismo apoiado em um movimento indígena, ainda que amplo.

Linera abriu um largo sorriso e me olhou divertido.

“A Fábrica da América do Sul é o Brasil. É de lá que poderá, um dia, chegar-se ao socialismo. Serão necessárias décadas para chegar lá. O que o movimento indígena possui é uma cultura igualitária, comunal, sobre a qual se pode apoiar um projeto democrático. Em torno deles é possível unir. Não mais dos operários, dos mineiros. Hoje, a outrora poderosa COB – Central Operária Boliviana – é um toldo vazio. Não é motor de mais nada.” 

Fim de linha. Levantamos-nos e nos despedimos. Na saída, uma movimentação de mestiços e indígenas na portaria do palácio nos chamou a atenção. Fomos informados que logo mais o presidente Evo Morales iria participar de uma cerimônia com comunidades rurais.

Àquela altura, Fred, nosso embaixador, já nos tinha sinalizado que ele, o presidente, não nos receberia. Menos mal. Da vez anterior, adiáramos a viagem para encontrá-lo e, após idas e vindas, fomos recebidos pelo ministro da Presidência, homônimo da nossa Casa Civil.

A seguir – DIÁRIO DE VIAGEM XVI – Garcia Meza e à mesa com as empreiteiras