DIÁRIO DE VIAGEM XIV – O jacobino | Raul Jungmann

DIÁRIO DE VIAGEM XIV – O jacobino

Ele jogou a cabeça para trás e fechou os olhos.

 

Nós estávamos no gabinete de Álvaro Garcia de Linera, o vice-presidente da Bolívia. Marcondes Gadelha fizera a abertura de praxe e também a pergunta inicial. E nós estávamos todos ali, em silêncio, naquele salão de dois ambientes, de grandes espelhos de molduras douradas pendendo das paredes do palácio presidencial Quemado.

 

Lembrei-me da vez anterior que ali estivera, com o mesmo Linera. Suas feições finas e cabelos precocemente grisalhos eram os mesmos. Naquela oportunidade, ele nos recebera com atenção e respondera uma a uma todas as questões pausadamente, pouco movendo as mãos, com o olhar fixo e algo distante e um meio sorriso ao final de cada resposta.

 

Enquanto aguardávamos calados, fiquei pensando na cidade à nossa volta, cujos ruídos filtravam-se sala a dentro.

 

Chegamos a La Paz no dia anterior e fomos direto para a residência do nosso embaixador, Fred Vasconcellos. No caminho do aeroporto ao elegante palacete que pertenceu a um dos reis do estanho, Patiño, vamos descendo das bordas do que parece uma vasta cratera, rumo ao centro. Nesse percurso e enquanto descemos, à nossa volta ergue-se cada vez mais alto um imenso paredão de casas que ocupam as encostas. A sensação que dá é como se estivéssemos em um anfiteatro gigantesco, com milhares de sentinelas que nos espreitam de cima.

 

Mais experiente nas alturas de La Paz, receitei ao pessoal moderação e cuidado, evitando comer e beber muito e andar devagar. Décio, entretanto, passara muito mal a noite anterior. Fred tivera que mobilizar um cardiologista e todos ficamos muito preocupados com o seu estado. Pela manhã ele estava melhor, depois de uma noite difícil e não pudera estar presente àquele encontro com Garcia Linera.

 

Este permanecia imóvel. Cabeça jogada para trás, de olhos abertos fitos no teto. Usava um blazer escuro e calça cinza clara. Ao seu redor dele, em dois sofás e uma cadeira de espaldar alto em frente à sua, onde eu estava, aguardávamos calados.

 

Na ante-sala, um ajudante de ordens, percebendo que nosso “fotógrafo oficial”, Cláudio Cajado, mexia na sua inseparável câmara, pediu que lhe entregasse, pois o Vice não permitia fotos nem o uso de celulares.

Linera, nosso anfitrião, teve uma trajetória peculiar. Formado em Paris, pós-graduado em matemática pura pela Universidade Autônoma do México (UNAM) e professor d sociologia e ciências políticas da Universidade Maior San Andrés (UMSA), retornou à Bolívia em 85 e engajou-se ao exército guerrilheiro “Tupak Katari”. O que lhe rendeu, em 92, cinco anos de cadeia.

 

Paulatinamente, tornar-se-ia um dos principais teóricos de um projeto de poder centrado nos movimentos indígenas e, como vice, serviu de ponte para as classes médias urbanas aproximarem-se e apoiar Evo Morales à presidência.

 

Na minha primeira audiência com ele, em setembro de 2007, perguntara-lhe por que razão o acordo de 2005, que permitia a regularização de bolivianos no Brasil e brasileiros na Bolívia, não ter concluído um só processo dos nossos. Respondeu que reconhecia que estavam atrasados, mas que isso seria revertido. Não foi. Um ano depois estávamos na mesmíssima condição. Sobre a expansão do cultivo de coca, que se refletia no crescimento das apreensões de pasta na coca em nossas fronteiras, afirmou que implantavam uma nova política, que daria resultado mais adiante. O que até agora não ocorreu. Finalmente, quanto à insegurança dos que tem terras em Sta. Cruz e outros departamentos, foi incisivo: não nos preocupássemos, ninguém tocaria em terras produtivas, fossem de brasileiros ou não! A insegurança, como vimos, se ampliara. Logo, minhas expectativas eram baixas quanto aos resultados da nossa audiência.

 

Marcondes, Cláudio e os demais davam sinais de inquietação e desconforto com o silêncio prolongado. Os minutos se alongavam, nos entreolhávamos sem saber o que fazer, inquietos.Como eu, todos tinham esquadrinhado aquele salão impessoal e frio, sem um quadro sequer nas paredes, uma escultura, nada.

 

Então, Garcia Linera baixou a cabeça, fitou algum ponto à sua frente e maquinalmente, começou a falar.

 

A seguir – DIÁRIO DE VIAGEM XV – O jacobino II