DIÁRIO DE VIAGEM XIII – Medo, insegurança, discriminação | Raul Jungmann

DIÁRIO DE VIAGEM XIII – Medo, insegurança, discriminação

O pessoal nos aguardava num salão grande e algo mal iluminado no andar térreo do hotel. Eram cerca de 30 brasileiros.

 

Fomos cumprimentando um a um. Em sua maioria gente de meia idade, embora contássemos com um bom número de jovens.

 

Sentamos todos ao redor de uma ampla mesa, enquanto alguns dos convidados permaneceram em cadeiras encostadas à parede.

 

Feita a introdução de praxe, ouvimos todos, um a um, pacientemente, aqui e ali pedindo um esclarecimento.

 

Quebrado o gelo inicial, os testemunhos foram convergindo para um ponto em comum, aonde despontava a insegurança e o medo.

 

Eu tomava notas de tudo que era falado e pedia, sempre que alguém usava da palavra, que dissesse o nome, que era pronunciado com certa relutância e sem o sobrenome. Era “André”, “Laís”, “Antonio” etc.

 

Foi então que perguntei a todos e bem alto: “Quem aqui foi agredido, levanta a mão.” Uns dois o fizeram. Tornei a perguntar: “E quem foi perseguido?”. Meia dúzia ergueu o braço. Fiz, então, a derradeira pergunta coletiva “E quem foi discriminado?” Quase todos ergueram o braço. Estávamos entendidos.

 

Falei então que eles estavam diante de representantes do Congresso Nacional brasileiro. Que não importava onde estivessem, eles eram cidadãos brasileiros, nós éramos seus representantes e iríamos levar ao conhecimento das autoridades brasileiras e bolivianas o que estava se passando.

 

Foi quando uma jovem senhora loura, que tinha se apresentado como dentista, falou nervosa: “Falem, falem, mas por favor não digam o meu, o nosso nome.” E prosseguiu: “Eu pensei muito se deveria vir até aqui. Pensei que nós podíamos ser seguidos, espionados. Cubanos, talvez venezuelanos… Aqui poderia ter alguma câmara, microfone escondido, sei lá. Então vocês, por favor, falem, protestem, mas não digam quem somos.”

 

Foi a vez de um sr. de cabelos grisalhos, de nome Rubens, pedir a palavra e afirmar que “todos ali estavam surpresos e gratos, pois era a primeira vez, em doze anos, que algum parlamentar tinha vindo visitá-los. Mas que achava que em 2009 as coisas iam piorar. E muito”.

 

Perguntei porque e ele respondeu:  “Eles tem encapuzados, tropa para-militar, que  sequestra quem é contra…Como pode Lula apoiar Evo? Tem muita gente presa por aqui.”

 

Moacir de tal – até o fim os sobrenomes foram evitados – foi o próximo a falar.

 

“Aqui não tem diesel, não tem gasolina. A gente tá tendo que estocar alimentos. Lula deveria ter uma postura mais dura”.

 

Na cabeceira da mesa, Patrick pedia a palavra há bastante tempo. E falou bastante, também.

 

“O Brasil tem que influir aqui para manter a democracia. Pelo Evo, a Bolívia está indo rumo ao socialismo… Aqui, os urbanos, os que moram nas cidades, são maus. Só os do campo, os indígenas, são bons. Do jeito que as coisas vão indo, isso aqui ainda vai virar um narco-estado. Num momento desses, vem a UNASUL e apóia o Evo (na questão dos conflitos no Pando). Olha, veja bem, essa Constituição, ela cria cidadãos de 1ª e de 2ª categoria.”

 

Carlos, um jovem magro, de olhos grandes e óculos, que se mantivera calado tomando notas no centro da mesa, está inscrito. É sua vez.

 

“Tem um professor meu que diz abertamente o seguinte, que são duas Bolívias. É diferente do Brasil, que é grande e miscigenado. Aqui, não. As raças não se encontram e a base é uma ideologia racista nas escolhas. Nesse sentido, Evo é uma decepção. Tá tudo muito complicado, difícil. Nós somos uns 6 mil brasileiros por aqui. A maioria estudantes. Temos que renovar nosso visto todo ano. A gente se sente inseguro. Eles nos atendem como se dissessem ‘não queremos vocês aqui’. É isso…”

 

Gilberto, que não largara a mão de sua mulher (?), fala pausadamente, como que pesando cada palavra dita. Está emocionado.

 

“Tá aumentando a produção de droga por aqui. Hoje são 40 mil hectares, não é? Tem, inclusive, uma redução na soja e, em seu lugar, mais droga. Eu não entendo o seguinte: nós, o Brasil ajuda na dívida deles e nós só apanhamos! Nós temos uma terra… O que o Brasil vai fazer por nós? A gente tá inseguro, com medo… Tem muito dinheiro entrando aqui que não se sabe a origem. Parte da mão de obra tá na coca.”

 

A nossa dentista, lá do início, pede a palavra novamente.

 

“Nós tamos num pé e noutro. Sabemos que temos que correr, mais dia menos dia. Esse é um estado (Sta. Cruz) aterrorizado. O medo é coletivo.”

 

Muitos testemunhos depois, entre denúncias e mostras de insegurança, era hora de parar. Passamos um bilhete para Marcondes Gadelha, afirmando que logo mais entraríamos em colapso físico e que, pela manhã cedo, partiríamos para Cochabamba, e de lá para La Paz.

 

Então, deixamos com todos eles nossos telefones e endereços eletrônicos e o mesmo fez o pessoal do consulado que nos acompanhava. Por fim, nos despedimos.

 

No jantar, trocando idéias sobre o que ouvíramos, a certeza que parte daquela insegurança, tensão, vinha do momento que Sta. Cruz estava vivendo. Um longo e agudo conflito com o governo de La Paz. Conflito que, em setembro- outubro, tinha chegado à beira de uma guerra civil e que na undécima hora fora evitada.

 

A seguir: DIÁRIO DE VIAGEM XIV – O jacobino