DIÁRIO DE VIAGEM XII – A las armas, valentes crucenhos! * | Raul Jungmann

DIÁRIO DE VIAGEM XII – A las armas, valentes crucenhos! *

Sta. Cruz é uma cidade baixa, e até onde conheci, plana, com um centro antigo, aonde boa parte das calçadas possuem colunas que sustém um teto, como se fosse um alpendre contínuo. Imagino que para proteger do forte sol. Nas ruas empoeiradas, circulam reluzentes vans e caminhonetes de luxo, sinal da prosperidade cruzenha. Pólo rico da Bolívia, Sta. Cruz é grande produtora de grãos, gado, minérios e gás.

 

Nossa agenda ali era densa, para apenas um dia de estada. Iríamos fazer três reuniões. Uma com empresários dos setores da indústria e serviços, na sede da CAINCO, outra com produtores rurais e, por fim, a comunidade brasileira local.

 

Instalados no hotel Los Tajibos, um labirinto de corredores e apartamentos brancos aonde não raro me via perdido, saímos apressados para a primeira das reuniões. Não havia tempo a perder.

 

A Câmara de Indústria Comércio, Serviços e Turismo de Sta. Cruz, está para a Bolívia, como a FIESP para nós, guardadas as proporções. No prédio alto e moderno, nos aguardavam empresários dos setores de açúcar e álcool, geração de energia elétrica, de óleos vegetais e de frigoríficos.

 

O tom geral era de desolação e queixa, sobretudo pela insegurança jurídica agravada pela nova Constituição boliviana e baixa prioridade à atração de investimentos.

 

Abrindo a reunião, o presidente Jorge Arias, maior importador boliviano de soja brasileira, fez uma explanação da história de Sta Cruz.

 

“A Bolívia surge em torno de Cerro Potosi com a prata e, depois, Sucre. Para cá, para Sta. Cruz, foram mandados degredados para povoar. Em 1938, com o presidente Bosch, define-se em lei que teríamos 11% dos impostos. Só vinte anos depois, em 1958, após lutas, mortes, exílios, só então a lei foi cumprida. Veja que até 80 era o presidente da República que indicava prefeitos e governadores! Em 85 conquistamos as eleições diretas para prefeitos e em 2000 para governadores. Toda nossa história, toda nossa vida foi uma luta constante contra a centralização, o estado unitário! E, agora, nos acusam de sermos separatistas.”

 

Enquanto ele falava, eu ia contando, na parede em minha frente, os presidentes da CAINCO, desde 1918: trinta e seis.

 

“Aqui não tinha nada, nada! Nós fizemos uma cooperativa de águas, e trouxemos água para cá. Fizemos cooperativas de energia, de telefone, de transportes. Tudo com nosso esforço, iniciativa, pois do governo central nunca tivemos nada. O governo gravitava em torno do oriente e nós, do ocidente, não contávamos. Crescemos sozinhos e hoje temos uma visão descentralizadora, produtiva e de mercado.”

 

Com vários conselheiros pedindo a palavra, Jorge Arias passou a vez para Daniel Velasco Oloya.

 

“Nós do oriente temos a expectativa de progredir. Não há como desconhecer a força de Evo. Agora, não queremos a influência de Chávez, queremos de Lula. Queremos segurança jurídica, que hoje não há. Evo colocou o tema do racismo em pauta (sic). La Paz não entende de terras, não entende isso aqui. Por exemplo, a cultura da soja existe antes dos brasileiros aqui chegarem. Agora, estava tudo caminhando para instalar aqui uma usina de biodiesel da Petrobrás, e o que aconteceu? Evo foi convencido por Chávez a não implantá-la. O mesmo com o etanol: como a YPFB tem o monopólio interno e externo, não podemos fazer nada, estamos atados porque o Chávez não quer.”

 

Àquela altura, estávamos todos com fome. Ainda bem que o presidente Jorge Arias também, acho, pois mandou servir o almoço enquanto a reunião continuava com Ricardo Reimers, gerente de serviços empresariais, fazendo uso da palavra.

 

“A EBX também teve que sair por inspiração do Chávez. Nós queremos mais investimentos, mas como isso é possível com essa nova Constituição? O que um artigo afirma, outros três negam. São cinco, seis autonomias – nacional, regional, departamental, municipal, indígena… A justiça será comunitária, o povo é quem decide. E os juízes da Suprema Corte serão eleitos por voto popular! Imagine que quando Senado e Câmara discordarem, o Congresso torna-se unicameral. Essa Carta é uma máquina eleitoral de Evo.”

 

 Jorge Arias retomou a palavra para falar sobre uma questão levantada por Cláudio Cajado: drogas.

 

“Essa é uma história longa, complicada. Sem dúvida – dirigindo-se aos demais – vocês me corrijam se for o caso, o dinheiro da droga, da coca, tem crescido e muito. E, agora, expulsaram o DEA (Drugs Enforcement Agency, dos EUA), expulsaram o embaixador, a USAID e suspenderam o ATPD (mecanismo de compras favorecidas do governo dos  EUA), o que vai nos fazer perder US$ 180 mi em exportações. Nós aqui achamos que a produção de drogas só tende a crescer.”

 

Ao término do nosso encontro, perguntei pelo governador Branco Marinkovic, que lá se chama “prefecto”. Jorge Arias nos respondeu que ele estava foragido, acusado por La Paz de participar de um atentado terrorista.

 

Despedidas feitas, saímos correndo para a sede da CAO – Câmara Agropecuária do Oriente e da ANAPO – Associação de Produtores de Oleaginosas e Trigo. 

 

Fomos recebidos numa sala retangular, repleta de empresários, e escaldante, pois o ar condicionado não dava conta daquela tarde quente e de muito sol de Sta. Cruz. Ergo, o desgaste seria dobrado.

 

Passemos a palavra aos nossos anfitriões. Antes, porém, registro que, como no CAINCO, uma parte dos presentes era de empresários brasileiros, inclusive o presidente da CAO, Maurício Roca, que nos disse o seguinte:

 

“Essa Câmara concentra 70% do setor que tem uma produção avaliada em mais de US$ 1.2 bi. Nossos principais produtos são a soja e o girassol. Em 1968 éramos 50 mil habitantes e cultivávamos açúcar. Hoje somos 2 milhões de pessoas. Crescemos 9% ao ano e 1/3  da economia da Bolívia está aqui. Porém, de cada US$ 4 arrecadados, retorna apenas um. Nós lamentamos que a Bolívia não assuma a nossa identidade agrícola.”

 

Àquela altura eu estava ensopado de suor e bebia um copo d’água após o outro. Volta e meia olhava para o aparelho de ar condicionado aflito, na expectativa de que alguém promovesse um milagre.

 

“A Carta, depois das jornadas de setembro, outubro, melhorou. Mas segurança jurídica não há. Eles passam a ter o controle político da justiça e um juiz de 1ª instância desfaz qualquer decisão da Suprema Corte. Hoje temos leis regulatórias que se sobrepõem às leis do referendum. Que fazer? Os indígenas estão no ocidente. Nós, do oriente somos um terço, o ocidente tem dois terços. E difícil. Eu espero que o Congresso pressione Lula para que ele pressione Evo. O Brasil tem que ser mais firme. Até porque temos brasileiros ameaçados de morte por aqui. E também temos um claro retrocesso no combate às drogas, que vão para Europa via o Brasil ou ficam por lá mesmo.”

 

Tivemos várias falas ainda, mas o essencial estava dito e registrado. Já escurecia quando saímos à rua e todos estávamos muito cansados. Mas o secretário França, enviado pela embaixada de La Paz para nos acompanhar, informava que a comunidade brasileira estava à nossa espera há horas, no hotel aonde nos hospedáramos, Los Tajibos. Que, por sinal, é o nome de uma palmeira, nos disseram.

 

* Essa era a palavra de ordem, pichada nos muros da cidade, quando lá estive em 2007.

 

A SEGUIR: DIÁRIO DE VIAGEM XIII – Medo, insegurança, discriminação