DIÁRIO DE VIAGEM XI – “Aidéticos” | Raul Jungmann

DIÁRIO DE VIAGEM XI – “Aidéticos”

“Todos os anos, todos nós, temos que nos submeter a um teste de AIDS. Sem isso, não nos deixam ficar, não podemos renovar o nosso visto.”

 

Foi uma perplexidade geral e perguntamos todos de uma só vez o porque daquilo, daquela exigência. Ninguém soube responder.

 

Era domingo, 10 e meia da manhã, e estávamos numa sala de aula da Univalle, uma ampla e bem cuidada universidade privada situada em Cochabamba, aonde acabáramos de chegar uma hora e meia antes.

 

À nossa frente, um grupo de 40 a 50 jovens estudantes brasileiros, trajando jeans ou bermudas, em sua maioria cursando medicina. 

 

Antes de nos reunirmos com eles, tivéramos um encontro com a direção da escola, a qual nos fizera uma longa exposição sobre a universidade, sua história, estrutura, cursos etc. A razão de estarmos ali eram os 400 brasileiros que estudavam em suas dependências. E nós queríamos ouvi-los.

 

“Não temos notícias que outros estudantes, de outros países, também tenham que fazer anualmente o teste de AIDS. Mas dizem que é lei.”

 

Foi quando o Décio Araújo pediu a palavra e assumiu o compromisso de todos em levar a questão às autoridades bolivianas com quem iríamos nos encontrar em La Paz.

 

A palavra então voltou para os estudantes e os testemunhos e questões foram se sucedendo, quando um rapaz alto e moreno pediu a palavra da 4ª fila de onde estava e provocou outro choque.

 

“Esse ano eu fui, como todos os anos, renovar meu visto. Vencida a fila, quando chegou a minha vez, o funcionário recusou minha ficha alegando que estava errada. Eu disse que ela tinha sido preenchida por um outro funcionário, mas não adiantou. Fui chamado de brasileiro burro e idiota, que corrigisse os dados e voltasse para o começo da fila. Assim fiz. Ao chegar de novo no local de entrega, repetiu-se a cena. A ficha continha erros, disse ele, que dessa vez a rasgou e aos gritos de brasileiro é burro e imbecil, me mandou retornar.”

 

Daí pra frente, os depoimentos foram quase todos na mesma direção. Vários se disseram permanentemente discriminados quando em contato com serviços públicos, em especial os destinados a estrangeiros. Todos, igualmente, se queixaram dos achaques e das propinas que tinham que dar para serem atendidos. 

 

Abaixo, um relato exemplar, de uma jovem de nome Sarah:

 

“Eu fui fazer um registro e me pediram duas cópias dos meus documentos. Então perguntei por que duas, se uma cópia não bastava. Aí, o cara falou ‘agora são quatro’. Aí eu disse, mas por que? E ele, ‘são dezesseis’. Mas…  ‘são cem agora, moça. Vai querer ou não?’ É assim.”

 

Outro:

 

“Todo mês tem documentos, exigências. Sai em média uns 400, 500 reais. Uma revalidação de passaporte custa US$ 250. E tem uma multa de sete reais por dia por não retirar documentos.”

 

Os estudantes relatam outros problemas. Seus diplomas não são reconhecidos no Brasil. E o CRM define uma única data anual para os que estudaram fora possam ser avaliados, enquanto que os demais têm a comodidade de exames a qualquer tempo. Eles são discriminados lá e cá.

 

E a vida deles não é fácil, acordando diariamente às seis da matina, de segunda a sábado, me diz Sarah. Ainda assim, aos domingos, ela e colegas costumam prestar assistência médica gratuita a comunidades pobres, testemunhando, às vezes, situações dramáticas. Como quando uma criança estava condenada a morrer por seus pais não terem dinheiro para pagar o atendimento médico, que só é gratuito até o quinto ano de vida dos bolivianos. Sarah pagou a conta, com seu minguado dinheirinho, e a criança foi salva.

 

A seguir: DIÁRIO DE VIAGEM XII – “A las armas, valentes crucenhos!”